segunda-feira, 24 de novembro de 2008

O Testamento de Os Bandidos

“Não me acusam, insultam; não me combatem, caluniam [...] Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história".

Assim se inicia e termina o testamento do nosso maior pai político, Getúlio Vargas. Últimos dizeres daquele que com seu suicídio adiou o golpe da direita por mais de dez anos, deixando sua carta-testemunho a todos os brasileiros, seus filhos.

No espetáculo-festa pelo jubileu do grupo Oficina no último dia 28 de outubro, Zé Celso Martinez Corrêa, o próprio, encarnou Getúlio escrevendo seu suspiro final antes de seu tiro no coração. Zé vestia um manto vermelho, tinha um charuto na boca e pena na mão. Naquele momento, foi difícil decifrar o significado dessa reconstituição.

Após presenciar a montagem de Os Bandidos, porém, a metáfora varguista pode tornar-se mais clara. Ou pelo menos mais fácil para conjecturas: Mesmo em vida, Zé Celso está fazendo de Os Bandidos - e do cinqüentenário do Oficina - a sua carta-testamento!

A antropofagia de Os Bandidos de Shiller, em cartaz no Tea(r)to Oficina é o testamento vivo, ao vivo, quixotesco, de arte e alegria absoluta de um dos maiores atuadores da história do nosso teatro. Um doloroso e belíssimo réquiem teatral. A montagem de Os Bandidos é um marco indiscutível na vida do Oficina e na trajetória de Zé Celso.

Os Bandidos é também um passo a frente, mais maduro, após a adaptação de Os Sertões de Euclides da Cunha. Anterior empreitada realizada pelo grupo. O novo espetáculo é uma revisão crítica da “política do enfrentamento” que embasava aquela montagem monumental.

Em Os Sertões, os canudenses surgiam como paralelo e inspiração para o conflito com o grupo Silvio Santos. Querela que já se perpetua por 28 anos. Zé Celso via na obra de Euclides uma fonte da água viva para manter acessa a chama de luta do Oficina pelas terras do entorno, que pertencem ao grupo financeiro do dono do SBT. E que serviriam para a construção de um Teatro de Estádio no bairro do Bexiga.

Ali, Silvio Santos era o inimigo a ser combatido. Sem misericórdia. Aqui, em Os Bandidos, temos o Oficina de coração e alma abertas para a conciliação com seu algoz. Seja nessa vida ou em outra, a utopia que move o grupo Uzyna Uzona é o abraço fraterno entre antagonistas que são irmãos de mesmo sangue, de mesmo pai.

Num amadurecimento doloroso, Zé Celso despreza a “política do enfrentamento” não só de Os Sertões, mas dos 50 anos de “terrorismo” e “banditismo” do Oficina. Pois foi com esses termos que carimbaram os sonhos revolucionários do diretor na novela que foi, e é, seus confrontos, encontros e desencontros com seu vizinho.

Zé revê sua história com os olhos de quem tem consciência da própria finitude. O encenador máximo de nosso teatro sabe que um dia deixará de estar aqui entre em nós, com sua persona e personalidade.

Os Bandidos está para Zé Celso assim como o filme Luzes da Ribalta está para Charles Chaplin. Na personagem do palhaço decadente Calvero, está o testamento de vida e obra do gênio que criou o mito Carlitos. Chaplin, no final de seu filme, encena a própria morte na coxia do palco de seu último espetáculo.

Zé Celso também encena sua própria partida. Porém não num tom de vaidade ou autocomiseração, mas sim na sinceridade de exposição de seus dilemas e hesitações mais pessoais. Zé reinventa Shiller para falar de seus passos rumo à Eternidade, ao Cosmos, indo embora desta vida para entrar pra história do teatro do Brasil, do Mundo e do Teatro de Estádio que está ainda por vir. E que virá! Talvez não no nosso tempo, mas no Tempo do teatro. Que é outro e imensurável...

Os Bandidos é a mais verdadeira festa-espetáculo do jubileu do grupo Oficina e de Zé Celso Martinez Corrêa. Uma auto-reflexão aguda e impiedosa sobre o passado, o presente e o que virá. A cada encenação da peça de Shiller, esse incansável diretor de 71 anos planta uma semente artística e sonhadora que deve ser regada para além de seu falecimento...
Vida longa à Zé Celso e ao Teatro Oficina!
Evoé!

4 comentários:

Anônimo disse...

De arrepiar!

Anônimo disse...

Muito bom.Ótimo.

Buana.

Cassandra Mello disse...

é. Bandidos é tudo isso, e tanta coisa. a cada apresentação ela se entranha mais um pouco no meu corpo alma.

Raphael Lima disse...

mas o Zé pode viver ainda muitos anos com essas tecnologias da saúde e do genoma... Vivamos! Vejamos!
Deus salve os mistérios gozosos!